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Qual, fazendo eco de Walter Benjamin, é a tarefa do tradutor ao interpretar um mito indígena? Este ensaio tenta indentificar o que está em jogo e sustenta que é realmente mais complexo. O autor enfrentou perguntas complicadas de tradução e violência colonial durante décadas de trabalho com uma população, frequentemente chamada ‘os Warao’, numa selva tropical do Leste de Venezuela.

A ‘tradição americanista,’ classicamente proposta por Franz Boas, colocou a coleção etnográfica e a tradução de mitos e outras narrativas no centro da antropologia, linguística e folklore. A reputação de figuras como Edward Sapir, Ruth Benedict, Paul Radin, Melville Jacobs, Dell Hymes e Dennis Tedlock foram forjadas, parcialmente, coletando, traduzindo e interpretando mitos dos indígenas americanos e usando-os como infraestruturas intelectuais chave para lançar marcos generalizantes sobre a linguagem, cultura, ‘visão do mundo’ e disposições psicológicas. Este trabalho não se limitou à America do Norte. Talvez o mais famoso seja a publicação por Claude Lévi-Strauss de um conjunto de quatro tomos, Mythologiques sobre a mitologia da America do Sul e do Norte (1969). Para Lévi-Strauss, os mitos foram as fontes-chave para revelar a lógica fundamental das culturas individuais, um padrão cultural ameríndio fundamental e a estrutura da mente humana.

Esta tradição académica voltou a ganhar protagonismo recentemente através do que se tem chamado de ‘a virada ontológica’, especificamente no trabalho de Eudardo Viveiros de Castro e Philippe Descola. Viveiros de Castro (2004) propôs que as “cosmologias ameríndias” representam a relação entre humanos e não-humanos através do “perspectivismo”: as pessoas, os animais e os objetos definem-se relacionalmente por como “captam a realidade de distintos pontos de vista” (p. 481).

As últimas décadas também têm sido testemunhos de importantes críticas por parte de acadêmicos indígenas às práticas acadêmicas de coleção, tradução e interpretação. O investigador Cherokee Chris Teuton (2012) adota uma visão geralmente generosa da investigação de investigadorxs brancxs sobre a narrativa dos indígenas norteamericanos, utilizando o trabalho de Hymes e Dennis Tedlock para apresentar uma coleção e interpretação de histórias Cherokee através das perspetivas Cherokee. Ao mesmo tempo, ele situa sua investigação dentro dos estudos indígenas e a sua própria relação com a comunidade Cherokee, o que provocou uma mudança até a designação de leitores Cherokee como sua audiência principal. Em lugar de oferecer ao público branco um acesso privilegiado aos mundos índigenas, Teuton sugere que pessoas brancas se sintonizem com o que as narrativas podem ensinar-lhes sobre a soberania, a descolonização e a autodeterminação indígena. Cutcha Risling Baldy (2015), de descendência Hupa, Yurok e Karuk, acusa académicxs brancxs de utilizarem formas simplistas de traduzir narrativas que infligem violência colonial por apagarem compreensões indígenas e distorcerem o estado ontológico dos personagens mitológicos. Gerald Vizenor (Tribo Chippewa de Minnesota) sugere que investigadorxs brancxs têm interpretado fundamentalmente mal a natureza das narrativas indígenas por tomar-las como reflexos diretos de crenças culturais e visões do mundo. As traduções e interpretações oferecidas por investigadorxs brancxos apagaram “a ironia criativa” (Vizenor, 2019, p. 4) das histórias, ignorando que são as origens dos conceitos de “liberdade indígena, movimento natural e sobrevivência” (p. 95).

Como académico ativista comprometido, os residentes do Delta Amaruco pediram o autor em 1985 que estudasse seu idioma e formas culturais para ajudar a desenhar programas de educação bilingue e formas de atenção médica culturalmente apropriadas. Durante quase quatro décadas, a tradução tem sido fundamental para o papel dele ali. Briggs foi pedido que traduzisse petições para fornecer acesso a saúde, educação e outros serviços governamentais e acabar com o abuso laboral e ecológico. Traduziu para uma mulher indígena falsamente acusada de infanticídio. Trabalhando com uma médica de saúde pública venezuelana, Clara Mantini-Briggs, passou muito tempo traduzindo para esforços de educação de saúde, particularmente em surtos de cólera e raiva (Briggs & Mantini-Briggs 2003, 2016).

Os residentes do Delta consideravam cruciais os mitos (dehe nobo). O notável líder e educador Librado Moraleda caraterizava os mitos essenciais para a descolonização das escolas (Escalante & Moraleda, 1992). Em vez de pedir mitos, o autor recordou gravações enquanto realizavam representações durante as cerimónias, enquanto reconhecidos narradores ensinavam os neófitos, trocas casuais na vida diária e noites em que os narradores de mitos entretinham as comunidades deles com representações majestosas de mitos.

A explicação anterior desta prática de tradução é problemática. Concentra-se demasiado diretamente nas dimensões intra- e interlinguísticas e projeta a redução das performances a textos. Por isso, ignora a ideia de Susan Gal (2015) de que a tradução “aponta utilmente a toda uma família de processos semióticos” (p. 224). Além disso, situa o autor na modalidade extrativa criticada pelxs investigadorxs indígenas. Esperançosamente o processo baseado em diálogo evita a má-tradução dos nomes e o estado ontológico dos personagens. Trouxe as perspetivas indígenas (as dos narradores e outras) ao centro das traduções e interpretações. No entanto, não vai suficientemente longe em enfrentar o chamado de Teuton, Risling Baldy e Vizenor de localizar a investigação sobre a narrativa no contexto mais amplo das demandas de soberania, descolonização, autodeterminação, liberdade e sobrevivência dos povos indígenas. Particularmente não consegue confrontar o profundo legado do colonialismo na tradução e interpretação do mito e o chamado para o posicionar como um componente crucial das formas em que a recuperação de terras e o enfrentamento à opressão entram nas agendas descoloniais (Tuck & Yang 2012).

O renomado curandeiro, narrador e líder político Santiago Rivera realizou “o mito do devir dos povos não-indígenas”, enquadrando-o não somente como dirigido ao autor, mas também sobre ele. A atuação incluiu uma secção irônica sobre como os indígenas ficaram pobres e os não-indígenas ricos, interpretada por um missionário como evidência da pobreza cultural indígena. Rivera aprofundou brilhantemente os desafios oferecidos por Risling Baldy, Teuton e Vizenor, levantando perguntas fundamentais para traduzir os mitos, questionando quem determina o que constitui um mito, e que implica uma tradução descolonial por amarrar a ação do mito às lutas para enfrentar a exploração não-indígena das suas terras, águas costeiras, mão-de-obra e sexualidade das mulheres. Assim como a performance desafiou ao autor a participar das lutas indígenas, também levantou perguntas sobre as ricas análises míticas e as ambições descoloniais dos estudiosos da ‘virada ontológica’ Viveiros de Castro e Descola, aumentando as perguntas levantadas pelos interlocutores Araweté de Descola.

Bibliographie

Barral, B.M. de. (1960). Guarao guarata: Lo que cuentan los indios Guaraos. Escuelas Gráficas Salesianas.

Briggs, C.L., & Mantini-Briggs, C. (2003). Stories in the time of cholera: Racial profiling during a medical nightmare. University of California Press.

Briggs, C.L., & Mantini-Briggs, C. (2016). Tell me why my children died: Rabies, Indigenous knowledge and communicative justice. Duke University Press.

Escalante, B., & Moraleda, L. (1992). Narraciones warao: Origen, cultura, historia. Instituto Caribe de Antropología y Sociología, Fundación La Salle.

Gal, S. (2015). Politics of translation. Annual Review of Anthropology, 44, 225–240.

Lévi-Strauss, C. (1969). The raw and the cooked: Introduction to a science of mythology. (J. Weightman and D. Weigntman Trans.). Harper and Row. (Original work published 1964).

Risling Baldy, C. (2015). Coyote is not a metaphor: On decolonizing, (re)claiming and (re)naming coyote. Decolonization: Indigeneity, Education and Society, 4(1), 1–20.

Teuton, C.B., with Shade, H., Still, S., Guess, S., & Woody Hansen, W. (2012). Cherokee stories of the Turtle Island liars' club. University of North Carolina Press.

Tuck, E., & Wayne Yang, K. (2012). Decolonization is not a metaphor. Decolonization: Indigeneity, Education & Society1(1), 1–40.

Viveiros de Castro, E. (2004). Exchanging perspectives: The transformation of objects into subjects in Amerindian ontologies. Common Knowledge, 10(3), 463–484.

Vizenor, G. (2019). Native provenance: The betrayal of cultural creativity. University of Nebraska Press.

Citer cet article

Référence électronique

Charles L. Briggs, « Synopsis: O aparecimento de povos não indígenas: Confrontando o colonialismo na tradução de mitos indígenas », Encounters in translation [En ligne], 1 | 2024, mis en ligne le 30 mai 2024, consulté le 27 juillet 2025. URL : https://publications-prairial.fr/encounters-in-translation/index.php?id=163

Auteur·e

Charles L. Briggs

University of California, Berkeley, USA

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Traducteur·rice

Zsolt Györegy

University of Oslo, Norway

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