A vibrante homenagem ao pai, a consciência de ter raizes lusitanas assumidas e a habilidade de manifestar hibridismo cultural
O poema analisado, “Ao meu belo pai ex-emigrante”1, é um excerto da segunda obra de José Craveirinha2, Karingana ua Karingana3, datada de 1963 mas editada pela primeira vez em 1974. A obra pretendeu, nas palavras do autor, transmitir poeticamente o dia a dia dos moçambicanos, numa época marcada pela luta contra a ocupação colonial. Em primeiro lugar, o poeta exprime a sua subjetividade em relação aos sentimentos filiais íntimos, com fervor e ardência, ao realçar designadamente o amor carinhoso que o mesmo sente pelo pai de origem portugesa que já faleceu há “vinte e sete anos e três meses”. Através desta expansão de sentimentos, ou seja, desta efusão, o sujeito lírico presta-lhe homenagem, de modo declamatório, recorrendo a uma apóstrofe, usando o vocativo e dirigindo-se diretamente ao defunto no início da maior parte das estrofes do poema lírico, repetindo muitas vezes a palavra Pai, às vezes precedida por uma interjeição para traduzir o sentimento de saudade e de admiração assim como a sensação molesta de dor em relação ao luto (“Oh, Pai”, “a ti, meu Pai”, “te escrevo, meu Pai”). Este recurso estilístico consiste em repetir o mesmo substantivo, que também consta do título do poema, no princípio de sete estrofes consecutivas, para efeito de ênfase ou simetria. Com efeito, esta anáfora dá relevo à figura do pai e confere vivacidade ao poema em prosa no âmbito de uma composição lírica de assunto elevado, própria para ser cantada, tal como uma ode (“eu deixo nesta canção/ para ti, meu Pai, minha homenagem”). Assim, no poema se louvam e celebram as virtudes, ações dignas de admiração e o génio do genitor. Neste panegírico, o sujeito expressa a ternura, o amor e o reconhecimento que sente pelo pai através de expressões alegóricas significativas, por exemplo com uma personificação (“soltas já são as tuas sentimentais/ sementes de emigrante português”) ou outras proclamações solenes (“E na minha rude e grata/ sinceridade […]” filial “[…] não esqueço/ meu antigo português puro/ que me geraste […]”). Ele assume assim as próprias origens portuguesas e heranças lusitanas, referindo-se à beleza de “um Algarve de amendoeiras florindo na outra costa”, isto é, a terra natal do pai, e afirma “Juro que em mim ficaram laivos/ do luso-arábico Aljezur da tua infância” que é vila algarvia onde o pai nasceu e viveu por algum tempo antes de emigrar para Moçambique por causa de uma grande indigência. Aliás, fala acerca de “ibéricas heranças de fados e broas” e evoca “O Zé de cabelos […] aloirados” porque é mestiço de pai europeu. Além disso, apresenta o pai como um “colono tão pobre como desembarcaste em África” que fugiu da miséria de Portugal, mas não como um colonizador opressor e cruel para com os povos negros explorados de Moçambique, para justificar, desta forma, a instalação do mesmo em novo mundo africano, no âmbito de uma apologia que põe em destaque a força do elo filial. O poeta, cheio de admiração pelo pai, fala com desafogo ao ressaltar o amor incomensurável pelo pai e ao se lembrar das ações e palavras do pai na infância e dos momentos preciosos de meiguice que compartilhava com o mesmo nessa altura. Além do louvor da figura do pai, além da exaltação ditirâmbica das qualidades e da índole dele, o desabafo do sujeito lírico também salienta uma tristeza inconsolável e uma enorme nostalgia. O mesmo tem saudades do pai e padece da sua ausência. Assim, o poema de cariz intimista e doloroso dá a conhecer os pensamentos e sentimentos penosos que José Craveirinha exterioriza, semelhantes a uma lamentação (“nesta carta elegia para ti”). Assim, ao longo do poema, o sujeito sorumbático dá ênfase à melancolia devido ao passamento do pai: “Ainda me lembro bem do teu olhar”, “E choro-te”, “chorando-me mais agora que te conheço”. Assim parece-lhe que a dor se tem tornado mais aguda agora que é adulto maduro, com consciência do tempo que foge e da efemeridade das horas alegres de convivência e dos instantes de felicidade vivenciados junto do pai, ao que pode fazer referência o verso metafórico (“e um Algarve de amendoeiras florindo na outra costa”), na medida em que as flores da amendoeira também são efémeras, “na outra costa” referindo-se provavelmente, no âmbito de uma silepse, ao além onde fica o pai algarvio. O sujeito lírico refere-se mesmo à primeira pessoa do plural para evocar o cortejo fúnebre do pai, este processo inclusivo visando ressaltar o facto de que a morte física do pai causou até a morte interior do poeta, o trauma do mesmo destacado por uma oposição marcada pela associação da conjunção mas, o advérbio só e o pronome pessoal com maiúscula Tu: “[…] depois/ dos carros na lenta procissão do nosso funeral/ mas só Tu no caixão […]/ nos limites da vida”. O poeta traumatizado nega até o falecimento dos pais ao asseverar que os mesmos espiritualmente continuam a viver (“Afinal tu e minha mãe não morreram ainda bem”), apesar de ambos já estarem mortos há muito tempo (“e minha Mãe agonizando na esteira […]”, “[…] nos torrões/ da sepultura de velho emigrante numa cama de hospital”). Esta figura de retórica associando afirmações aparentemente contraditórias é um paradoxo que patenteia a rejeição de um acontecimento violento psicologicamente que o poeta não pode aceitar. Além disso, o sujeito macambúzio usa outra metáfora (“chorando gotas de uma cacimba de solidão […]”) para reforçar a ideia de que ainda se sente sozinho e desamparado enquanto órfão. Por outro lado, lembra-se do sofrimento terrível do pai moribundo: “e também lágrimas na demência dos silêncios/ em tuas pálpebras revejo nitidamente”. O silêncio insuportável do pai prestes a morrer contrasta com o fulgor e a viveza do mesmo quando era jovem e de boa saúde, ao que a oposição sensorial entre o ouvido associado à vida alegre junto ao pai e a vista à tristeza intensa, na sexta estrofe, dá relevo no âmbito de uma antítese: “ou teus versos de improviso em loas à vida escuto”/ “e também lágrimas […]/ em tuas pálpebras revejo nitidamente”, sendo este efeito de expressividade reforçado por outra oposição sensorial entre dois versos (“[…] escuto”/ “[…] na demência dos silêncios”). A ausência do olhar vivo e alerta do pai deixa-o paradoxalmente ainda mais presente na mente do poeta (“e mais humano o tenho agora na lucidez da saudade”). O poeta traz à memória o semblante cadavérico do pai agonizando e por isso sofre ainda mais, o que é frisado por uma antítese opondo o clarão dos olhos do filho e a extrema palidez do pai agonizante, e por um paralelismo na construção sintática através de determinantes possessivos (meu/ teu): “e na íris do meu olhar o teu lívido rosto”. Corrobora o trauma que vivenciou aquando do passamento do pai, ao recorrer a um oxímoro opondo a tez baça das olheiras, devido à agonia, à luminosidade e ao brilho caracterizando normalmente um halo, e a um eufemismo usando o substantivo com maiúscula Adeus: “ah, e nas tuas olheiras o halo cinzento do Adeus”. Assim, o poeta é observador atento e tem grandes capacidades de guardar e reconstituir sensações e impressões adquiridas anteriormente quando traz à memória recordações em relação ao pai e à infância, designadamente na altura do passamento da figura paternal. Com efeito, põe a tónica mesmo nos próprios sentidos, não só o ouvido como também o tato (“[…] a cantar/ e a rir-se […]”, “[…] na voz roufenha”, “e para sempre um zinco tap-tap de cacimba no chão”, “tua voz serena profecia paternal”, “ibéricas heranças de fados”, “ou teus versos de improviso […] escuto”, “tua voz grave recitando […]”, “[…] eu deixo nesta canção”, “eu […] no vaivém dos teus joelhos”, “e na minha cabeça de mulatinho os últimos/ afagos da tua mão trémula mas decidida sinto”, “no dirlim-dirlim da guitarra/ ou o arco […] deslizando no violino”). No início da oitava estrofe, em “ou o arco da bondade […] no violino da tua aguda tristeza” é de salientar o recurso expressivo a alegorias, assim como a um paralelismo na construção sintática com o intento de ressaltar as grandes qualidades humanas do pai tais como a ternura, a brandura, a benevolência, a benquerença, isto é, um corpo de valores e princípios que contrasta com o sistema socioeconómico e político colonial muito hierárquico abrangendo um conjunto de práticas e instituições repressivas, violentas, racistas, o que inspirava sentimento doloroso, de infelicidade ou de pesar ao pai. Com efeito, o pai receava pela sorte do filho depois do seu falecimento na medida em que sabia que a vida dele seria muito difícil de suportar enquanto mulato num contexto colonial e racista, recorrendo o poeta a um eufemismo para suavizar esta perspectiva medonha (“[…] profecia paternal: — ‘Zé:/ quando eu fechar os olhos não terás mais ninguém.’”). Além disso, o contexto arriscado em Moçambique, caracterizado pelas violências não só do colonialismo como também da guerrilha dos movimentos independentistas em vésperas da guerra colonial, origina certa ânsia no poeta que o mesmo expressa ao evocar a visceral tristeza do pai. Outro sentido medular é o da visão, com a relevância do olhar do poeta e seu pai, assim como a omnipresença do campo lexical da vista, ao longo do poema (“[…] no ‘écran’ todo branco”, “quando eu fechar os olhos […]”, “[…] visões alucinantes”, “Ainda me lembro bem do teu olhar/ e mais humano o tenho agora na lucidez da saudade”, “e também lágrimas […]/ em tuas pálpebras revejo nitidamente”, “dez anos de alma nos olhos cheios da tua figura”, “e na íris do meu olhar o teu lívido rosto”, “ah, e nas tuas olheiras o halo cinzento do Adeus”, “E revejo os teus longos dedos […]”, “chorando gotas de uma cacimba de solidão”). Além do protagonismo da potência da reminiscência sensorial no sujeito lírico, é relevante notar a presença essencial da analepse na construção poética, a saber nas quinta, sexta e oitava estrofes. Este processo de retórica consiste em evocar lembranças relativas à infância que dizem respeito a eventos ocorridos anteriormente em relação a eventos já evocados, nomeadamente o momento em que o pai morreu.
Além disso, o poeta faz questão de lembrar igualmente a paixão do pai pela arte e vida: “ou teus versos de improviso em loas à vida escuto”, “tua voz grave recitando Guerra Junqueiro ou Antero” e “E revejo os teus longos dedos no dirlim-dirlim da guitarra/ ou o arco da bondade deslizando no violino […]” são expressões que frisam esse amor apaixonado do pai pela vida, a literatura e a música. Assim, o pai tivera uma educação musical europeia e fora capaz de declamar Guerra Junqueiro (1850-1923) ou Antero de Quental (1842-1891), que são grandes poetas, escritores e pensadores portugueses do século xix. Desta forma, o pai de José Craveirinha fora um homem culto que recebera uma boa educação europeia. Assim, o poeta herdou esses conhecimentos procedentes da civilização ocidental, da cultura portuguesa do colonizador e, deste modo, dá vulto aos mesmos. Por fim, no âmbito de uma hipotipose, o poema pinta os factos e os objetos respeitantes à infância e ao óbito do pai no hospital com imagens tão vivas e cores tão plausíveis que apresenta à vista do leitor o que se quer significar.
Outro elemento no poema que mostra que José Craveirinha herdou uma cultura ocidental é o interesse que ele manifestava, quando jovem, pelas motas (“campeão de corridas […] Harley Davidson”), pelas “proezas dos leões do Circo Pagel”, pelos jogos de futebol com amigos (“o ‘Trinta-diabos’ de joelhos esfolados nos mergulhos/ à Zamora nas balizas dos estádios descampados/ avançado-centro de ‘bicicleta’ à Leónidas no capim”. De facto, o poeta refere Ricardo Zamora (1901-1978), futebolista internacional espanhol muito famoso e considerado um dos melhores guarda-redes do mundo; também faz referência a Leônidas da Silva (1913-2004), outro futebolista célebre brasileiro, chamado de o Diamante negro, que popularizou, a partir de 1938, o pontapé de bicicleta. Muito desporto marcou o corpo e o espírito do poeta: esforço, competição, vitória e derrota, sacrifício até à exaustão, o que caracteriza igualmente o seu percurso político. Além disso, os atores norte-americanos fascinavam-no quando era jovem. Com efeito, o poeta refere-se ao ator burlesco e humorista chamado de o nariz grande Jimmy Durante (1893-1980) (“para além do meu antigo amigo Jimmy Durante a cantar/ e a rir-se sem nenhuma alegria na voz roufenha”), ao realizador, argumentista e humorista célebre Buster Keaton (1895-1966) (“subconsciência dos porquês de Buster Keaton sorumbático/ achando que não valia a pena fazer cara alegre”). O mesmo também era ator com muito êxito no cinema mudo e conhecido por ser o homem que nunca ri. O poeta refere-se igualmente aos atores cómicos Oliver Hardy (1892-1957) e Stan Laurel (1890-1965), a dupla mais famosa de toda a história do cinema (“ante os meus sócios Bucha e Estica no ‘écran’ todo branco”). Assim, o poeta recorre a uma metonímia pelo emprego da palavra francesa écran em vez de outras, a saber os atores, devido a uma relação de contiguidade existente entre elas, que se exprime nas relações da causa pelo efeito ou do continente pelo conteúdo. Com efeito, todos os atores na televisão eram brancos, de origem europeia ou norte-americana. Outra referência ao cinema estadunidense é o filme Tarzan (1932) de Van Dyke. O poeta refere-se aos atores Johnny Weissmuller e Maureen O’Sullivan que desempenhavam respectivamente os papéis de Tarzan e Jane Parker (“para salvar a rapariga Maureen O’Sullivan das mandíbulas/ afiadas dos jacarés do filme de Tarzan Weissmuller”). O poeta também era amador de gibis, western e filmes de capa e espada, evocando vários atores desses géneros narrativos, com quem ele se identificava quando era criança, tais como Buck Jones (1891-1942) (“eu Buck Jones no vaivém dos teus joelhos”), Ricardito, Douglas Fairbanks (1883-1939) e Tom Mix (1880-1940) (“e eu ainda Ricardito, Douglas Fairbanks e Tom Mix/ todos cavalgando e aos tiros menos Tarzan analfabeto”). Em seguida, o poeta evoca Lon Chaney (1883-1930), chamado de o homem com 1 000 rostos, outro ator muito impressionante que costumava interpretar papéis de personagens grotescas, atormentadas e com maneiras afetadas e muita caracterização. Conforme o escritor americano Ray Bradbury (1920-2012), Lon Chaney exteriorizava a alma das pessoas, a psique delas, revelando no ecrã os receios secretos delas. O poeta afirma assim que estava “todo maluco de medo das visões alucinantes/ de Lon Chaney com muitas caras”. A história de Lon Chaney é sempre a dos amores de sentido único e ele enfatiza o medo de não ser amado, o susto de nunca ser amado, o receio de se tornar ridículo e ver o mundo a desviar-se de si. Esse pensamento de Ray Bradbury talvez correspondesse inconscientemente ao estado de espírito de José Craveirinha na juventude: o medo de não ser amado suficientemente pelo pai branco, devido ao facto de ser filho mestiço. Aliás, o poeta confessa “sou eu, Pai, o ‘Cascabulho’ para ti”, sendo esse termo uma palavra ambígua, podendo designar quer um rapaz pequeno, quer uma coisa pouco importante em sentido figurado. Em contraste com isso, o poeta era chamado de “Sontinho” pela mãe durante a infância, o que é diminutivo de Sonto e significa em língua ronga domingo, porque o poeta nascera num domingo. Observa-se um paralelismo na construção sintática desses dois versos consecutivos que consiste numa antítese opondo a palavra portuguesa depreciativa “Cascabulho” à outra ronga melhorativa “Sontinho”, o que manifesta a escolha do poeta em termos de opção identitária, o domingo também referindo-se ao dia da ressurreição de Jesus Cristo e, metaforicamente, o ressurgimento e a revivescência do povo moçambicano num futuro próximo, aquando da independência nacional.
A opção identitária de moçambicanidade, a rejeição da identidade europeia e a força do sentimento nacionalista africano
Deste modo, o poeta sente-se outro, profundamente moçambicano, pois faz muitas vezes referência à mãe, que também simboliza metaforicamente a terra natal, Moçambique, em termos de Pátria e de opção identitária, afirmando, através de uma personificação e um poliptoto, “as maternas palavras de signos/ vivem e revivem no meu sangue/ e pacientes esperam […]” e “que me geraste no ventre de uma tombasana”, termo que designa, em Moçambique, uma rapariga solteira (do ronga, virgem, donzela). Além disso, observam-se metáforas relevantes: a terra fértil representa a mãe, ao passo que as “[…] sentimentais/ sementes […]” se referem ao pai emigrante, sendo o poeta fruto desta comunhão entre os pais, desta harmonia entre homem branco e mulher negra que se entregam de corpo e alma para fortalecer uma relação amorosa harmoniosa, além dos antagonismos raciais impostos pelo sistema colonialista, e para construir igualmente um futuro melhor em Moçambique, isto é, respeitador da dignidade e dos direitos humanos, independentemente da etnia e do sexo. Através de outra metáfora sublinhando a forte esperança dos pais e do poeta em relação a esse porvir radioso, José Craveirinha sugere que esta era de liberdade, igualdade e fraternidade entre cidadãos só poderá originar-se quando um Estado moçambicano livre for uma certeza para os negros e mulatos: “as maternas palavras de signos/ vivem e revivem no meu sangue/ e pacientes esperam ainda a época de colheita/ enquanto soltas já são as tuas sentimentais/ sementes de emigrante português”. Assim, depois de um período de “signos”, isto é, de símbolos ou sinais, virá o tempo em que este sonho de independência passará a ser realidade, o que é frisado por uma prolepse, a saber uma antecipação de um evento acontecido mais tarde no plano da história. Deste modo, o poeta tem confiança no futuro de um Moçambique independente. Neste sentido, através desta metáfora, confia no povo moçambicano e no seu potencial humano para assegurar o desenvolvimento económico e social da população. No entanto, a esperança de um futuro radioso não será concretizada por causa da guerra civil que teve lugar após a independência de Moçambique e devido ao regime autoritário comunista marxista-leninista de partido único que se manteve no poder no âmbito da República popular de Moçambique, desde a independência do país em 1975 até ao fim da Guerra fria em 1990. Além disso, no âmbito de uma declaração da própria identidade cultural, o poeta salienta o facto de que é “mais um novo moçambicano”, reivindica o sentimento de pertença à esta nação africana sujeitada pelo poder colonialista português e põe em destaque o ser mulato (“de cabelos crespos”, “e seminegro para jamais renegar/ um glóbulo que seja dos Zambezes do meu sangue”). O paralelismo na construção de dois versos consecutivos na segunda estrofe, com gradação crescente (“[…] para não ser igual […]” e “[…] para jamais renegar”), amplifica a intensidade da proclamação solene e a confissão de amor, de modo claro e terminante, por Moçambique e pela negritude: “semiclaro para não ser igual a um branco qualquer/ e seminegro para jamais renegar/ um glóbulo que seja dos Zambezes do meu sangue”. Além do carácter e a qualidade daquele que é negro, a negritude é o conceito que deu origem a um movimento cultural e político anticolonial de valorização da identidade negra e africana, criado em 1932 por Aimé Césaire (1913-2008), poeta surrealista muito famoso oriundo da Martinica, e aprofundado por Léopold Sédar Senghor (1906-2001), escritor e antigo presidente da República do Senegal, por oposição à cultura opressiva dos povos colonizadores europeus. Este movimento caracteriza-se assim pela crítica do capitalismo colonial, do recalcamento e da vergonha de ser negro, do mimetismo enquanto imitação inconsciente pela qual o negro adota o comportamento, a linguagem, as ideias dos brancos entre os quais vive no contexto colonial. Por fim, a negritude fundamenta-se na crítica da construção da imagem errónea do negro pelo olhar do branco e, por outro lado, a despersonalização, a saber a perda da consciência da própria identidade e da realidade exterior africanas. Neste sentido, Rita Chaves confirma a adesão de José Craveirinha à Negritude:
No apego tão firme a esse patrimônio cultural, pode-se ler mais sobre o itinerário poético e existencial de Craveirinha. Lê-se, por exemplo, que sua origem mestiça não esbateu a consciência de que a dignificação do negro era um dos pressupostos para a libertação nacional, o que vem explicar a ligação de seu nome ao movimento da Negritude. Teria sido, aliás, um dos representantes de Moçambique no célebre caderno Poesia negra de expressão portuguesa, editado no começo da década de 50, em Lisboa, pela combativa Casa dos Estudantes do Império4.
Aliás, o poeta sublima o amor não só pelos pais, como também pela Pátria. A força do sentimento nacional moçambicano no sujeito lírico é evidenciada por uma aliteração em /m/ que é a letra das palavras mãe e amor, em cinco versos da quarta estrofe, um poliptoto baseado na palavra amor em dois versos da mesma e, por fim, uma perífrase melhorativa nos últimos três versos, referindo-se a Moçambique: “mas amar por amor só amo/ e somente posso e devo amar/ esta minha bela e única nação do Mundo/ onde minha Mãe nasceu e me gerou/ e contigo comungou a terra, meu Pai5.”
Apesar de assumir as origens e heranças lusíadas, o poeta não se sente português por essa razão. De facto, o sujeito desenha sentimentos ambíguos. Ele rejeita até a parte europeia da sua fisionomia legada pelo pai, ao recorrer à terceira pessoa do singular em vez da primeira quando evoca os cabelos alourados na infância, no âmbito de um processo de desamor e desapego em relação à dimensão europeia da sua identidade que se tornou, de hoje em diante, fonte de pejo. Este distanciamento identitário observa-se igualmente através do emprego da primeira pessoa no verso seguinte para sublinhar a censura póstuma dirigida ao pai: “O Zé de cabelos crespos e aloirados/ não sei como ou antes por tua culpa”. Neste sentido, o poeta atormentado sofre não só com o falecimento dos pais, como também em relação à questão identitária, como se se sentisse envergonhado, incomodado e perturbado, de certa forma, pela sua própria realidade física e genética, a saber ser mulato ou “seminegro”, na medida em que recalca mesmo qualquer elemento de identificação com a nação portuguesa, devido à segregação racial inerente ao colonialismo que origina no sujeito uma atitude de hostilidade proveniente de uma situação inferiorizante que o mesmo não pode remediar por uma revalorização. Esta ideia é frisada por uma antítese marcada pelo advérbio não e a conjunção mas, uma metáfora e uma metonímia no âmbito de um paralelismo na construção sintática (“[…] no meu não cicatrizado/ ronga-ibérico mas afro-puro coração”). A consciência de ter raizes lusitanas assumidas e a habilidade de manifestar hibridismo não implicam nele nenhuma identificação com a portugalidade, ou seja, o sentimento de afinidade ou de amor por Portugal. Só se sente africano, particularmente moçambicano, o que é sublinhado por dois versos consecutivos: “E onde ibéricas heranças […]/ se africanizaram para a eternidade nas minhas veias”. Neste sentido, o poeta inspira-se no pensamento do movimento antropofágico (1928-1929), fundado pelo Manifesto Antropófago publicado por Oswald de Andrade (1890-1954), um dos grandes poetas e escritores do modernismo literário brasileiro, que também foi um dos impulsionadores da Semana de Arte Moderna que teve lugar em São Paulo em 1922. Aliás, Tarsila do Amaral (1886-1973), uma das maiores artistas modernistas da América Latina, desempenhou igualmente um papel radical neste movimento inovador que é um dos marcos do modernismo brasileiro, cujo propósito era a deglutição simbólica da cultura alheia dominante, a saber a europeia e a norte-americana. Desta forma, as heranças portuguesas e outros conhecimentos ocidentais adquiridos no período colonial, tais como códigos e padrões que se manifestam nas normas, crenças, valores, criações e instituições, não devem ser imitados na África, no âmbito de uma construção identitária pós-colonial. Com efeito, nesta perspectiva, José Craveirinha expressa a ideia de que Moçambique há de libertar-se de uma sujeição ao domínio da civilização ocidental. Para tal, conforme o poeta, Moçambique há de apoderar-se das culturas portuguesa e estadunidense e digerir as mesmas, através de um processo de transformação e apropriação para as tornar adequadas e convenientes no contexto sociocultural e económico de valorização da identidade africana. As mesmas devem ajustar-se às condições do meio ambiente africano, à nova realidade, o que implica um conjunto de modificações, uma assimilação, uma acomodação, no âmbito de um processo de emancipação. Por outro lado, o poliptoto na derradeira estrofe (“porque nascem e renascem […]”), em relação às ideias independentistas do poeta, revela o amadurecimento desse projeto nacionalista e remete para outro poliptoto já referido, na primeira estrofe (“vivem e revivem […]”), que põe a tónica no mesmo desígnio. Desta forma, conforme Rita Chaves,
Sempre que a escolha for imperiosa, a dimensão africana que compõe a sua mestiçagem é que definirá o seu lugar. Quando o conflito se expõe, será firme a postura de quem não pode e não quer prescindir de um legado essencial para a poesia e para a vida6.
Além disso, observa-se um paralelismo na construção dos versos já mencionados nas primeira e última estrofes que visa frisar a comunhão ideológica entre os pais e o poeta em relação ao plano independentista: “as maternas palavras de signos” remetem para “[…] meu Pai/ por enquanto escondidos teus póstumos projectos”, “vivem e revivem no meu sangue” para “[…] nascem e renascem no meu […]/ […] afro-puro coração”, “e pacientes esperam ainda […]” para “[…] no silêncio e […] na espera”. Neste sentido, além da repetição da mesma palavra sangue associada aos determinantes possessivos meu (1a estrofe) e teu (4a), observa-se igualmente a presença de um quiasmo em dois versos consecutivos na quarta estrofe que reforça esta comunhão política entre o poeta e os pais: “se africanizaram para a eternidade nas minhas veias/ o teu sangue se moçambicanizou […]7”.
Além disso, José Craveirinha recorre a uma gradação crescente, ao longo das estrofes do poema, para significar o semelhante processo identitário póstumo de africanização do pai: “emigrante português” (1a estrofe)/ “meu antigo português puro” (2a)/ “velho emigrante” (4a)/ “colono tão pobre” (4a)/ “meu belo Pai ex-português” (no último verso da 4a estrofe, aludindo assim ao título do poema). A gradação crescente prossegue depois, através de “meu belo algarvio bem moçambicano!” (no último verso da 6a), já não referindo o poeta o estatuto paterno de emigrante de nacionalidade portuguesa, mas só evocando a província da qual o pai é natural, como se fosse com o intento de apagar toda referência a Portugal enquanto Estado imperialista. Este processo literário continua na última estrofe (“E fica a tua prematura beleza afro-algarvia/ quase revelada nesta carta”). Por fim, nos dois derradeiros versos do poema, o clímax na enumeração sequencial põe a tónica na integração do pai enquanto indivíduo estrangeiro e minoritário na nação moçambicana, sem que este perca todas as suas características culturais próprias, tal como uma naturalização póstuma que conforma o resgate do pai, a saber a salvação da sua alma, a sua redenção em relação ao pecado original, isto é, ser português, que torna imprescindível a sua remissão. Segundo o poeta, a história paternal deve fazer parte integrante da história de um vindouro Moçambique independente. Neste sentido, só este recurso simbólico que consiste numa naturalização póstuma do pai é capaz de livrar o poeta da tensão psicológica extrema em relação à questão identitária (“meu resgatado primeiro ex-português”). No âmbito da gradação crescente já referida, José Craveirinha termina assim o poema exclamando a propósito do pai: “número UM Craveirinha moçambicano!”. De resto, na 6a estrofe, observam-se outra aliteração em /m/, letra que corresponde à palavra amor, e outra perífrase melhorativa em relação ao pai, assim como um paradoxo, valorizando a força dos sentimentos filiais para com a realçada figura paternal e, por outro lado, destacando a complexidade da problemática identitária da mesma: “na dimensão desmedida do meu amor por ti/ meu belo algarvio bem moçambicano8!” Além disso, o poeta enfatiza o processo identitário póstumo de africanização do pai ao afirmar, através de um neologismo, “o teu sangue se moçambicanizou nos torrões/ da sepultura […]”. Através deste processo, o poeta tenta resolver o dilema, o conflito identitário que sente no âmago. A seu ver, o pai já não é português e pertence à nova nação moçambicana e à essa terra para todo o sempre (“onde minha Mãe nasceu e me gerou/ e contigo comungou a terra, meu Pai”). De modo póstumo, o poeta põe em destaque as supostas ideias independentistas do pai, ao evocar na derradeira estrofe: “por enquanto escondidos teus póstumos projectos/ mais belos no silêncio e mais fortes na espera”. José Craveirinha ainda recorre a um paralelismo na construção sintática dos dois versos para ressaltar a força do sentimento nacionalista do pai, sentimento ideado, de facto, pelo poeta.
A construção de representações pós-colonialistas e a absoluta necessidade de emancipação e afirmação da identidade nacional de Moçambique
Nesta perspectiva, José Craveirinha constrói as imagens de Moçambique e dá muita importância à valorização do mesmo, através da própria cultura e do património, não só a parte imaterial, linguística e histórica por exemplo, como também a parte material, nomeadamente geográfica e paisagística, com flora e fauna específicas. Neste sentido, o poema não é apenas uma “carta elegia”, mas também uma “canção”, uma ode em que o sujeito lírico dá ênfase à moçambicanidade, ou seja, um conjunto de traços considerados distintivos da cultura e da história de Moçambique. Primeiro, utiliza várias palavras e expressões oriundas das línguas africanas de Moçambique e integradas na língua portuguesa, que são marcas de apego em relação à terra natal e sua identidade africana, no âmbito de moçambicanismos. Por exemplo, usa o termo tombasana, já referido, para designar a mãe, o que significa virgem ou donzela na língua ronga. Também fala do povo dos “Zambezes” que vivem perto do rio epónimo que banha Moçambique, refere uma localidade, situada na periferia de Lourenço Marques (atual Maputo), onde a mãe faleceu, chamada “Michafutene”, relembra que a mãe lhe chamava “Sontinho”, termo já explicado. Por outro lado, evoca os jogos da infância, referindo-se à “mortífera pontaria de fisga na guerra aos gala-galas”, sendo os mesmos uma variedade moçambicana de lagarto, de cabeça azul, vindo o termo da língua changana. Tem igualmente lembrança das “corridas no ‘xitututo’” que designa em Moçambique uma motocicleta, evoca “os bolsos cheios de tingolé da praia”, ou seja, um pequeno fruto vermelho silvestre muito saboroso, “as viagens clandestinas nas traseiras gã-galhã-galhã/ do carro eléctrico […]” que corresponde à onomatopeia do rodar do elétrico nos carris em Moçambique, “as mangas verdes com sal”, que é fruta comum em Moçambique, e “bandos de sécuas” que é termo usado em Moçambique para designar patos ou gansos. Além disso, “da estrada do Zichacha onde eu nasci” faz referência ao Xipamanine, bairro pobre de Maputo de onde vem, e a Moçambique durante a colonização portuguesa, referindo-se a Roberto Frederico Zichacha (ou Zixaxa) (1869-1927) que era régulo de Fumó e filho de Ngungunhane, monarca da Dinastia Jamine e que foi preso, juntamente com parentes, pelos portugueses em vários lugares até à sua morte. Foi assim o último imperador do Império de Gaza no território que atualmente é Moçambique. Por outro lado, o poeta não evoca deliberadamente o lugar onde também morou com o pai, enquanto criança, no centro da cidade, porque não quer referir-se ao espaço do colonizador branco. Deste modo, o poeta, imbuído de uma consciência pós-colonial, tenciona valorizar apenas o espaço sociocultural desfavorecido e a história desconsiderada próprios do autóctone negro que foram desprezados pelo poder colonialista, mas que constituem o marco existencial e poético de José Craveirinha. Desta forma, o poema constrói as imagens de Moçambique e da própria cultura de modo muito subjetivo, apesar/ por causa do pluralismo de vivências no poeta que focaliza a identidade negra, ou seja, a negritude, revelando esta abordagem o envolvimento militante do mesmo.
A rejeição da identidade europeia está ligada à história violenta de Moçambique em relação ao colonialismo português que gerou mesmo um traumatismo na sociedade colonizada. Com efeito, é uma história de dominação, de humilhação, de vexames, de autoridades coloniais muito fortes e arbitrárias, de hierarquias sociais racialistas muito bem definidas. O poeta faz referência àquela opressão colonialista, afirmando “sementes de emigrante português/ espezinhadas no passo de marcha/ das patrulhas de sovacos suando/ as coronhas de pesadelo”. Apoiando-se nesta metáfora, evidencia o traumatismo causado pela violência da colonização, através da barbaridade que caracteriza o exército português durante a conquista de Moçambique e a suposta pacificação do território no Império, por causa de revoltas e guerrilhas indígenas contra as autoridades coloniais. Estes quatro últimos versos na primeira estrofe caracterizam-se, desta forma, por uma silepse, ou seja, um recurso estilístico que consiste no emprego de palavras simultaneamente em sentido próprio e figurado. Assim, o poeta põe a tónica na separação, na distância entre a violência referida das tropas portuguesas e os desejos do pai, quer dizer, os seus sonhos de conviver com os povos indígenas de Moçambique, em paz, e de construir juntamente com os autóctones um novo mundo, uma nova sociedade de confraternização, além dos antagonismos raciais muito fortes neste território. No entanto, “as coronhas de pesadelo” sugerem que tais sonhos de liberdade, igualdade e fraternidade são, de facto, vãs esperanças num sistema colonialista, racista e violento, que despreza e domina os negros e que produz desigualdade e injustiça a todos os níveis. Aliás, o poeta dá realce ao seu ressentimento referente a tal racismo, evocando que é “semiclaro para não ser igual a um branco qualquer”. Na altura do Império colonial, José Craveirinha colaborou assim num jornal chamado de O Brado africano que tratava de assuntos respeitantes principalmente à faixa da população moçambicana mais desprotegida, ou seja, negra. Enquanto jornalista, também fez campanha contra o racismo em outro jornal, Notícias, e foi o primeiro jornalista oficialmente sindicalizado em Moçambique. Além disso, entre 1965 e 19699, durante a guerra colonial, esteve preso, em virtude da sua ligação à FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique). Assim, ao escrever “bandos de sécuas ávidos sangrando grãos de sol/ no tropical silo de raivas [...]”, o poeta faz referência nova e metaforicamente à opressão colonialista das tropas portuguesas, através de uma animalização das mesmas que têm massacrado os povos autóctones de Moçambique e roubado as suas posses, provocando assim frustrações e ira nos indígenas. Este recurso estilístico associado a um paradoxo (“[...] sangrando grãos de sol”) destaca o nível irracional da violência no exército português, ao passo que os “grãos de sol”, através de uma reificação e a imagem do sol, figuram não só as indefesas populações negras injustiçadas e os seus recursos naturais e outros bens cobiçados pelos portugueses, como também o futuro radioso para as massas populares autóctones no âmbito de um Moçambique libertado e independente. Neste sentido, a imagem do sol sugere igualmente grande entusiasmo e vitalidade, resplendor, grande talento, felicidade e glória, para caracterizar o povo negro de Moçambique, assim como elemento que serve de ideal, a saber a independência da nação moçambicana, visto como fonte de inspiração, o “tropical silo de raivas” referindo-se, através de uma perífrase, a Moçambique. À imagem do sol opõem-se as “abafadas noites” no tempo presente do poeta, isto é, o período colonial, através de outra silepse e a polissemia do adjetivo abafadas que, além do sentido de ar abafado que caracteriza um território tropical como Moçambique, pode significar sufocadas como as revoltas nacionalistas, pelo poder colonial português, oprimidas ou apertadas como a angústia aperta o coração dos negros no contexto brutal do colonialismo, mas ainda se refere ao som abafado das vozes silenciadas de um povo indígena sofrido.
Ao escrever “[...] eu deixo [...]/ [...] minha homenagem de caniços/ agitados nas manhãs de bronze”, duas expressões opõem-se no âmbito de uma antítese: “[...] caniços/ agitados [...]” são canas delgadas, finas e flexíveis, ao passo que “de bronze” evoca uma liga bastante dura. Através de uma vegetalização, os “[...] caniços/ agitados [...]” também configuram, num sentido popular, as pessoas muito magras, os magricelas que sofrem privações em Moçambique, ou seja, as populações negras e pobres do território que nomeadamente vivem nos “caniços”, termo moçambicano que designa os bairros de construções rudimentares, sobretudo em zonas suburbanas, em que as massas populares necessitadas moram. Deste modo, os “caniços” designam assim o povo moçambicano indigente que se agita, se revolta contra o poder colonialista português, reivindicando a liberdade, a dignidade humana, a igualdade racial, a justiça social e económica, os direitos humanos. Além disso, os “caniços” são plantas vivazes, ou seja, resistentes, difíceis de destruir, robustas, que se dobram com a ventania e não se quebram, mas que são vivedouras. Aliás, este trecho do poema pode remeter para a fábula Le Chêne et le Roseau escrita por Jean de La Fontaine em 1668 conquanto o contexto histórico fosse diferente na França nessa altura. De resto, os “caniços” alegoricamente correspondem aos negros e mulatos naturais de Moçambique que também dobraram a cerviz, se dobraram ao império português há muito tempo, mas que se mantêm firmes e inabaláveis, sem nunca abandonarem o combate pela independência. No âmbito desta antítese, por outro lado, as “manhãs de bronze” referem-se, num sentido metafórico, aos colonizadores lusos que têm coração de bronze, ou seja, são duros ou indiferentes à condição humana inaceitável dos autóctones moçambicanos no Império colonial. Através de um eufemismo, a expressão “manhãs de bronze” evoca a extrema violência da conquista e do domínio colonial sobre os povos indígenas que dão provas de resiliência. Assim, esta antítese contribui para a heroização do povo moçambicano em luta contra o colonialismo. Por outro lado, através de uma metáfora (“[...] caniços/ agitados [...]/ chorando gotas de uma cacimba de solidão nas próprias/ almas [...]”), o poeta enfatiza as dificuldades terríveis e a aflição dos autóctones, designadamente daqueles que vivem nos subúrbios em casebres e pardieiros. Não sublinha a resignação e o sentimento de impotência dos mesmos por essa razão, mas sim a força espiritual, mental e psicológica dos moçambicanos que têm que enfrentar a morte e a injustiça, na expectativa de um futuro melhor. Ao escrever o poema em 1963, José Craveirinha pode referir-se à barbárie que aconteceu em Mueda, a 16 de Junho de 1960, quando um grupo de moçambicanos se dirigiu para a administração local portuguesa no intuito de reivindicar a liberdade e a justiça social de forma pacífica. A resposta da potência colonial a esse movimento social não poderia ter sido mais fatal. Centenas de cidadãos foram barbaramente assassinados. Além disso, observa-se a oposição entre os moçambicanos e os portugueses, por um lado, através da relevância do campo lexical em relação à flora indígena e a vegetalização dos autóctones (“grãos”, “caniços”, “esguias hastes espetadas”), por outro lado, através de outro recurso estilístico, ou seja, a animalização e a reificação dos colonizadores lusíadas (“bandos de sécuas ávidos sangrando [...]”, “nas manhãs de bronze”). Este processo expressivo salienta o contraste violento de estatuto entre os moçambicanos subjugados mas resilientes e, por outro lado, as opressores autoridades políticas, judiciais, militares e policiais portuguesas cujo comportamento e cuja índole se caracterizam por um embrutecimento até um nível bárbaro, sem nenhumas capacidades de raciocínio e sensibilidade. Além disso, o poeta frisa a permanência da opressão do poder colonialista (“nas manhãs de bronze”, “e nas abafadas noites dos nossos índicos verões”). Aliás, as “[...] gotas de uma cacimba de solidão nas próprias/ almas [...]” fazem referência às “abafadas noites” na medida em que a cacimba designa o nevoeiro denso que se forma ao anoitecer em Moçambique. Deste modo, o poeta relaciona metaforicamente a aflição terrível dos moçambicanos com as atrocidades cometidas pelo exército português para com os mesmos. Por fim, “[...] esguias hastes espetadas nas margens das húmidas/ ancas sinuosas dos rios” evocam, através da referida vegetalização dos autóctones marginalizados, o violento sistema colonialista arbitrário e alicerçado no racismo, na discriminação, na exclusão social e na segregação étnicas, em que os negros e mulatos vivem à margem da sociedade. Neste sentido, o poeta ainda recorre a uma silepse marcada pela polissemia do termo margens. Além disso, observa-se uma personificação dos rios de Moçambique num processo estilístico de feminização dos cursos naturais de água do território, com as “[...] húmidas/ ancas sinuosas dos rios”, o que traz à mente não só a bacia formosa de uma mulher, o regaço maternal onde se acha conforto e tranquilidade, como também o colo do útero materno, a madre onde se desenvolve o feto, a madre designando igualmente o leito de um rio ou a nascente de água, a matriz onde a nação moçambicana se gera, ou seja, a origem de um povo moçambicano livre, a fonte de um Estado-nação independente que há de vir num futuro próximo. Em suma, esta alegoria consiste numa exaltação da Pátria Mãe moçambicana.
Por fim, apesar de estarem mortos, os pais do poeta continuam a viver através das lembranças afetuosas e dos pensamentos ternos do mesmo, como se a alma deles fosse eternamente presente (“Afinal tu e minha mãe não morreram ainda bem”), aqui podendo também a mãe corresponder metaforicamente à Pátria moçambicana. De facto, agora que os pais morreram, eles substituíram, na memória do poeta que se tornou adulto e maduro, os heróis de filmes estadunidenses que costumava admirar na infância e a juventude, num processo de consciencialização nacionalista, política e social, e numa perspectiva pós-colonialista, quando afirma, através de uma oposição forte marcada pela conjunção mas e pelo advérbio sim, “mas sim os símbolos Texas Jack [...]/ o Tarzan [...]/ e a Shirley Temple [...]” para significar a rejeição da cultura ocidental que, no entanto, o fascinava tanto quando menino. Acrescenta no verso seguinte: “e eu também é que mudámos”. Neste sentido, o sujeito lírico usa os vestígios da memória baseados nas reminiscências em relação à infância e à mocidade para reconstituir novos conhecimentos, ideias e impressões determinados pelo pós-colonialismo. Assim, o poeta elabora novas imagens e constrói novas representações através do prisma do colonizado. Com efeito, como é que José Craveirinha, enquanto sujeito comprometido politicamente em prol da causa nacionalista moçambicana, poderia continuar a adular esses símbolos da cultura popular cinematográfica estadunidense que vieram a exemplificar a dominação da civilização ocidental sobre outras? “Texas Jack” (1842-1911), “vencedor dos índios”, é um ás do gatilho que matava os povos autóctones durante as guerras indígenas nos Estados Unidos da América, tal como as tropas portuguesas haviam massacrado os povos negros de Moçambique que se tinham oposto à conquista colonial e, mais tarde, à hegemonia dos colonizadores, o que iria causar a guerra de libertação do país travada pela FRELIMO que o poeta defende. Além disso, José Craveirinha abusivamente apresenta “o Tarzan” como “agente” inglês “disfarçado em África” no âmbito de versões cinematográficas que modificaram a leitura do romance de Edgar Rice Burroughs (1912) de modo a instrumentalizarem essa obra literária num sentido colonialista com muitos preconceitos e clichês sobre os povos negros na África. De resto, o poeta apresenta “a Shirley Temple” (1928-2014), famosa atriz de Hollywood que foi um ícone mundial e cuja personagem dá a ver muitas vezes uma menina pobre com quem qualquer criança no mundo inteiro pode facilmente identificar-se. Contudo, isso não corresponde à realidade da atriz que é filha de banqueiro muito rico. Por isso o poeta vê “sofisma nas covinhas da face” dela, ou seja, ressalta erros de percepção e de apreciação que consistem em fazer uma interpretação visual da personagem que não coincide com a realidade social da atriz. Desta forma, o poeta avisado vê, doravante, nessa menina só um produto comercial lucrativo da indústria capitalista ocidental que leva a vãs ilusões, ao passo que Shirley Temple passa por uma encarnação de sinceridade, a materialização dos bons sentimentos e da espontaneidade da infância para a maior parte do público. De repente, a personagem da menina inteligente e irresistível torna-se uma metáfora da falácia que configura a civilização ocidental, um emblema da sua arrogância, hipocrisia, falsidade e superficialidade. Esta personagem passa a ser igualmente o símbolo da sede ocidental de lucro. Desta forma, conforme Ecléa Bosi, “Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e ideias de hoje, as experiências do passado. A memória não é sonho, é trabalho10.”
Em definitivo, este poema intimista de afirmação nacional moçambicana é, portanto, fortemente marcado pelos sentimentos conflituosos, uma consciência e representações pós-colonialistas e todo um cunho popular e tipicamente moçambicano. Em suma, a poética de José Craveirinha possui um cariz social que se radica nas camadas mais profundas do povo moçambicano e, por outro lado, constitui uma fonte de inspiração para muitos poetas nacionais. De resto, o poema é composto em prosa, no âmbito de estrofes de grande dimensão, o que corresponde a uma forma literária que não obedece, de caso pensado, às normas ocidentais da versificação no modelo poético europeu. Sob a forma de texto livre, o poema distingue-se deliberadamente do padrão métrico português, o que é processo literário de emancipação e de afirmação da identidade nacional de Moçambique em relação ao domínio português. Além disso, a metáfora e a alegoria são marcantes e medulares na sua poética. Por outro lado, o poema salienta o peso da história sobre a sociedade moçambicana, em relação tanto à conquista e ao Império portugueses como à guerra colonial. Neste sentido, o vate frisa a complexidade da questão das heranças, da(s) memória(s) e da(s) identidade(s), tanto na perspectiva pessoal e íntima como do ponto de vista nacional. O cerne da questão também é o tópico da condição de subalterno, devido à colonização e o colonialismo subsequente. Assim, a poesia de José Craveirinha torna-se um espaço de livre expressão que permite lutar contra esse sistema imoral e repugnante que configura a condição de sujeição de um território e de uma nação, e, por outro lado, legitimar o derrube do regime colonialista e defender a causa justa da independência de Moçambique. Todavia, apesar de arauto da memória nacional do país escolhido em termos de referência identitária, isto é, Moçambique, José Craveirinha fica na intersecção e no hibridismo culturais, fazendo uso, frequentemente, de informações literárias e cinematográficas ocidentais muito diversificadas, e promovendo o diálogo intercultural e civilizacional, mas sempre numa perspectiva ideológica que cruza os preceitos do movimento antropofágico brasileiro, da Negritude e, antecipadamente, do pós-colonialismo que só emergiu a partir da década de 1980. Além disso, a poética inovadora de José Craveirinha desempenha um papel radical, na medida em que se caracteriza por um conjunto de princípios e processos literários que frisam a necessidade absoluta de emancipação e afirmação da identidade nacional de Moçambique em relação ao domínio português. Deste modo, o poeta consegue transfigurar as lutas pela independência e a liberdade em arte.